Eu tenho uma playlist chamada: “As músicas da minha vida”.
Ela é só minha: posso contar nos dedos de uma mão só quantas outras pessoas tem acesso à ela.
Nessa playlist, várias músicas me tocam profundamente (algumas mais, outras menos). Mas uma das que me transportam, me enchem de esperança, de vontade e de força, é essa:
Não existe uma única vez na qual escute esta música e um filme não passe pela minha cabeça: todas as pessoas, momentos, lugares, desafios, alegrias, êxtases, tristezas, aventuras e descobertas. É como assistir a um filme onde só eu sou a espectadora.
Um dos meus maiores medos é não viver.
E sobre isso, falei mais neste post:
~ e o seu tesão?
Um aviso antes de mais nada: este talvez seja o texto com menos linearidade (e mais pessoal) que já escrevi. Vai parecer um texto para meu diário - como se tivesse um. Mas fique e acompanhe o(s) raciocício(s) - vai valer a pena (assim espero!).
Então, ao ouvir:
Espero que quando o momento chegar
Você diga
Eu, eu, eu
Eu fiz tudo
Eu, eu, eu
Eu fiz tudo
Eu aproveitei cada segundo que este mundo poderia dar
Eu vi tantos lugares, as coisas que eu fiz
Sim, com cada osso quebrado
Eu juro que vivi
Meu corpo se sente vibrando, pronto para colocar a mochila nas costas e expandir.
Uma das lembranças que sempre passam pela minha cabeça, foi minha viagem ao Monte Roraima. Ela foi senão a, uma das minhas viagens mais importantes.
(Se você não me conhece a muito tempo, saiba que eu a-m-o fazer trilhas e estar na natureza. Até quando eu tento não passar perrengue, eu passo - mas sempre vira história pra contar…)
Me lembro direitinho: era minha primeira trilha longa. Meu primeiro acampamento raiz - dormir em barraca por vários dias, tomar banho no rio, xixi só nos matinhos… Zero conforto, muita canseira e andança.
Falando assim, você provavelmente se pergunta: “Gente! Mas então pra quê ir?”
E te respondo: para me conhecer melhor.
Me desafiar, ver do que sou capaz. Assim, nessa coragem toda? Não não.
Você não faz ideia de como eu estava com medo. Me lembro direitinho da sensação.
Na época, tinha zero rotina de atividades físicas.
Fazia uma trilha aqui outra ali, bem esporadicamente. Só sabia que gostava de trilhas.
A viagem surgiu porque ia visitar uma casal de amigos em Boa Vista e então, se já estaria tão perto, “por que não”? Aproveitei e fui.
Era um grupo de 4 pessoas (mais os guias que iam com a gente).
Pessoas que eu não fazia ideia de quem eram e então, meu pai sempre muito cauteloso, me falou: “Não é melhor você tentar conhecer alguém?”
Entrei em contato com o guia e perguntei:
- Leo, vai alguma outra mulher? (Mulheres aqui me entenderão…)
- Vai só uma.
- Me passa o contato dela?
Então, ele me passou seu facebook (naquela época, nem whatsapp existia direito! haha).
Ivana.
Me lembro direitinho do seu nome.
Mandei mensagem para ela, começamos a conversar e uma das primeiras coisas que ela me disse foi: “Estou treinando todos os dias para a trilha. Faço caminhadas longas, corro… e você? ”
No mesmo momento pensei: “Eita…eu deveria? Porque não estou fazendo nada…”
- Não estou treinando assim, mas vou começar algum treino então. Respondi.
Mentira. Não comecei nada. (Naquela época ainda não sabia como era bom ter uma rotina de exercícios, meu corpo ainda não conhecia ou tinha sentido isso).
Os dias para a viagem foram se aproximando e minha ansiedade, aumentando.
Eu, que não treinava todos os dias, de repente fazer um trekking de 8 dias?
”Vou passar MUITO perrengue. Duvido que dê conta.”
Era só o que pensava.
Fui para a viagem assim, achando que no segundo dia já desistiria e pediria para voltar.
Mas fui.
Quando chegou o primeiro dia, conheci o nosso grupo: 3 guias, 2 homens, Ivana e eu. Sendo que um dos homens era primo da Ivana, ou seja, eu era a única mulher de fato sozinha, que não conhecia ninguém e não tinha ninguém para contar.
A trilha começou e com ela o meu mantra (que sempre repito quando faço qualquer trilha): Quem corre cansa, quem caminha alcança.
[ Me lembro de ouvir isso de um senhorzinho, muitos anos atrás, enquanto caminhávamos na Zona Rural de Juiz de Fora (minha cidade). Lembro direitinho que, enquanto os mais jovens andavam lá na frente, quase que correndo, ele estava calmamente lá atrás. E em uma dessas andanças, estava com ele quando ouvi esta frase. Ela me marcou para o resto da vida.]
Fui caminhando, no meu próprio ritmo.
O caminho era muito bem sinalizado, não era necessário correr para ficar alcançando quem estava na frente, só existia um caminho para ir.
E então, lá fui eu, caminhando (e pensando e pensando… uma das minhas coisas favoritas ao fazer trilha é a oportunidade de ouvir o silêncio e os pensamentos.)
Nas paradas, a gente sempre se reencontrava.
Conversava um pouco, renovava as energias e seguia. Cada um no seu ritmo.
Então, o primeiro dia chegou ao fim.
Estávamos todos lá
… menos Ivana.
O tempo foi passando, passando e nada dela aparecer. Os guias, super preocupados com o anoitecer, chamaram os seguranças do parque para procurá-la de moto - e assim foram.
Quando era noite, ela apareceu. Visivelmente muito abalada, mas bem (de saúde).
Nesse caminhar, ela se distraiu e se desviou sem perceber - foi parar em um caminho que não deveria e quando percebeu, era tarde demais.
Mal sabia eu que aquela noite não dormiria. Ninguém dormiria.
Ivana passou a noite toda tendo pesadelos e gritando muito - mesmo cada um dormindo em sua própria tenda, dava pra ouvir como se estivéssemos todos na mesma.
No dia seguinte, ela continuava visivelmente muito abalada: seu andar não era o mesmo, sua confiança menos ainda, seu brilho… foi embora.
Ela continuou, sempre a última do grupo, mas dessa vez com um guia só para ela e quando tivemos nossa segunda noite: mesma coisa. Pesadelos e gritos.
O dia seguinte seria o dia no qual começaríamos a de fato subir o Roraima, ou seja: a exigência física e psicológica seria maior ainda. Muita, muita subida e então, já lá em cima, um pouco de altitude (nada super relevante como um Basecamp do Everest mas….montanha, né?).
Foi então que nosso guia nos avisou: Ivana não vai mais continuar.
- Daqui eu volto com ela, vocês continuarão sozinhos.
Naquele momento, deu mais medo ainda.
Não só o medo de não dar conta, afinal, se Ivana não conseguiu, quem dirá eu.
Mas também - e principalmente - o medo de a partir de então, ser a única mulher em um grupo só de homens. Estava prestes a subir uma montanha e ficar no meio do nada, sozinha, com vários homens.
Tenho certeza absoluta que as mulheres que me lêem neste momento sabem exatamente como é este medo.
Mas fui.
Decidi confiar que seriam homens respeitos e cuidadosos (no fim, estava certa).
Passei os dias seguintes em cima do Roraima, desbravando todo aquele mundo novo que se abriu para mim - é bizarramente lindo e quem não conhece não faz ideia da quantidade de vida que existe lá em cima!
Foram dias incríveis.
Duas das minhas fotos favoritas da vida surgiram nesse desbravar:
O primeiro nascer do sol que vimos.
Eu sou péssima (mesmo) em acordar antes do sol nascer.
Me lembro de nesse dia caminhar com muita atenção porque em alguns momentos, não sabia se ainda estava dormindo ou não (sou aquele tipo de pessoa que precisa de uns bons minutos para pegar no tranco depois que acorda…).
Me lembro do guia nos apressando para chegar no ponto específico e me lembro de como fiquei sem palavras quando me virei e vi isso:
Foi a primeira vez na vida que chorei vendo um nascer do sol.
O sono foi embora, o frio também. Tudo o que conseguia pensar era como estava feliz e grata por estar lá, presenciando, sentindo tudo aquilo com meus próprios olhos.
“Quantas pessoas no mundo teriam esse privilégio?”
Então, no mesmo dia só que mais tarde, eu vi isso:
Foi a primeira vez na vida que estava por cima das nuvens, caminhando com minhas próprias pernas.
Me senti levitando, como se meu corpo tivesse asas e eu pudesse voar - por um breve momento deu para entender um pouco da vista que os pássaros têm.
Era como se não existissem problemas no mundo.
Nunca mais me senti assim em nenhum lugar, só aquela vez.
E até hoje, quando estou em algum momento de meditação e me guiam falando “se sinta em um lugar sem preocupação e onde você se sente livre…” este exato momento é o que sempre vem à mente. Sempre.
Viver a experiência de subir o Monte Roraima me mudou para sempre.
Foi nessa viagem que comecei a abrir os olhos para quem eu era, sem me basear na visão de ninguém, só na minha. Foi nessa viagem que questionei muita coisa que ouvi durante toda a minha vida. Foi nessa viagem que entendi como nos colocamos tantas e tantas vezes na cadeira de julgadores mas que, no fim das contas, nós mesmos podemos ter atitudes que tanto um dia julgamos no outro.
Mas, principalmente: foi nessa viagem que aprendi a confiar em mim.
Zero rótulos. Ninguém me conhecia ou conhecia meu pai, minha mãe, meu irmão. Ninguém sabia de onde eu era, qual minha profissão, o que fazia.
Naqueles dias, eu era “só” a Ju.
E isso bastava.
E isso era suficiente.
E descobri ter uma força que até então, desconhecia.
Escutei várias vezes durante o caminho, desde o primeiro dia até o último, de várias pessoas diferentes: “Ju, montanha é 80% mental e 20% físico.”
Me lembro da primeira que ouvi isso, de dar aquela risadinha irônica do tipo “aham, tá…” e não acreditar.
Até que presenciei com meus próprios olhos tudo o que aconteceu.
Aquela mulher fisicamente muito mais preparada para viver aquela experiência, não concluiu. E a razão pela qual ela não conseguiu não foi porque seu corpo não aguentava ou não era capaz. Ela treinou muito para viver aquilo, estava mais do que pronta - muito mais do que eu. O que aconteceu não a deixou menos capaz fisicamente falando mas a fez duvidar, ter muito mais medo, a abalou, tocou em feridas que ela mesma nem sabia que ainda estavam lá.
Eu, que achava que mal conseguiria passar do primeiro dia, me surpreendi ao chegar no último. Eu, que não acreditava na minha capacidade e sempre duvidava de mim, continuava lá apesar dos desafios e dificuldades.
Aquela viagem me mostrou mais ainda a importância de me cuidar: não só fisicamente (que é importantíssimo) mas também, da minha mente, do meu emocional, do que está escondido debaixo do tapete.
Em momentos decisivos, é a mente que mais influencia.
Nossos traumas existem, mas viver uma vida fugindo de olhá-los só vai adiar um encontro tardio. Uma hora ou outra, algo acontece e gatilhos são acionados assim, sem aviso prévio.
E essa pode ser justamente a diferença entre desistir ou continuar.
“A única maneira de saber
É se doando por inteiro
…
Espero que você gaste seus dias
Mas que todos eles adicionem”
Não tive mais contato com Ivana, nunca mais.
Também vejo muitas problemáticas do caminho errado que ela tomou e penso: por que não tinha um guia com ela desde o início? São muitas variáveis que podiam acontecer e sim, as coisas podiam ser diferentes.
Mas, apesar de todas elas, ficam as experiências vividas. E delas, lições.
Eu pensaria coisas diferentes, questionaria coisas diferentes e talvez até agiria diferente.
Só sei que, independente de qual experiência seja, quero ter a certeza de que com cada osso quebrado, eu vivi.
Com carinho,
Ju
Que delícia de texto e que experiência rica. Sinto que cada uma de nós ja foi "Ívana" e que somos convidadas a seguir colhendo vivencias como "Ju". O medo, as marcas, as sobras no caminho podem ser paralisantes, mas se observarmos com um pouco mais de cuidado, temo um Guia nos sinalizando um caminho de crescimento que pode ser extraordinário!
Obrigada por esse relato JU <3